A problematização política ganha outro contorno por se tratar de duas mulheres em posição de poder.
Patricia Augsten | Doutoranda em Comunicação e Informação (UFRGS).
Há poucos dias, assisti ao filme “Duas Rainhas”, que conta a história das rainhas da Escócia, Mary Stuart, e a do Reino Unido , Elizabeth Tudor. A problematização política ganha outro contorno por se tratar de duas mulheres em posição de poder: a necessidade de demonstrar força, competência e autoridade; a constante tensão entre ambição de poder, casamento e maternidade; e a resistência em um contexto conservador, de violência de gênero e de ataque às liberdades sexuais femininas.
O que mais chama a atenção na trama é que, após várias tentativas de tirar Mary do trono da Escócia, o fato só se concretizou depois da exposição de sua vida íntima, quando foi acusada de libertinagem por ter tido três maridos. Aos gritos de “Morte à prostituta”, Mary foge da Escócia e pede abrigo para sua prima e “rival”, Elizabeth, no Reino Unido.
Nós, mulheres, travamos ainda e diariamente a mesma guerra. E é sobre isso que quero refletir antes que acabe o Agosto Lilás, mês em que a Lei Maria da Penha completa 15 anos e que se fala da importância da legislação para a garantia dos direitos das mulheres. Uma das manifestações de violência sofridas por nós é a violência política de gênero, raramente debatida ou percebida como um problema sistêmico, fruto de um dos pilares de sustentação de nossa cultura: o machismo.
A baixa representação de mulheres em cargos de poder e a estigmatização do seu papel político e social levam ao não reconhecimento das mulheres como atores essenciais nas tomadas de decisão, o que faz com que sua vida privada seja o principal alvo de ataques. A violência política atinge mulheres de todos os espectros ideológicos e em diferentes esferas de atuação com a quebra de privacidade, pois quando se quer atingir a integridade de uma mulher pública (também as anônimas) o primeiro passo é vasculhar sua vida íntima, para chancelar a sua “incompetência”. Todas as mulheres em cargos de poder são passíveis de servir como exemplo para este tipo de violência. Cito uma das mais recentes: a ministra Damares Alves, que foi exposta com assuntos de cunho íntimo para constrangê-la junto à comunidade evangélica.
Também cito um dos maiores exemplos que temos no Brasil de misoginia na política: as violências sofridas pela ex-presidenta Dilma Rousseff, sobretudo, no processo de impeachment. Neste dia 31/08/2021 completam-se cinco anos da cassação de Dilma, após a votação no Senado Federal, por 61 votos favoráveis e 20 contrários. Um pouco antes, no dia 29 de agosto de 2016, quando Dilma falou no Senado, ela destacou os componentes misóginos e de preconceito contra as mulheres que vinha sofrendo durante o processo de impeachment.
De acordo com a pesquisa De Louca a Incompetente: Construções Discursivas em Relação à Ex-Presidenta Dilma Rousseff, de Perla Haydee da Silva, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), a maioria dos xingamentos contra Dilma tinham como base o gênero da ex-presidenta. Aliás, quem não se lembra dos adesivos no tanque dos carros? A título de curiosidade, a média do valor da gasolina, em 2015, era de R$ 3,32, quase a metade do atual valor (R$ 6,37).
Os exemplos são muitos e se espalham pelo país. Entretanto, o Brasil deu um passo importante e necessário em prol das mulheres. Em agosto deste ano, foi sancionada a primeira lei que regulamenta o tema, a Lei nº 14.192/2021, que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher nas atividades e espaços relacionados ao exercício de seus direitos políticos e de suas funções públicas. Além disso, assegura a participação de mulheres em debates eleitorais e dispõe sobre os crimes de divulgação de foto ou vídeo com conteúdo inverídico no período de campanha eleitoral.
De acordo com o texto da Lei, é considerada violência política contra a mulher toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher. Além disso, considera atos de violência política contra a mulher qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos e de suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo. A Lei também altera o Código Eleitoral (Lei Nº 4.737/1965), a Lei dos Partidos Políticos (Lei Nº 9.096/1995) e a Lei das Eleições (Lei Nº 9.504/1997).
Outra iniciativa realizada em agosto para o enfrentamento à violência política contra mulheres é uma campanha sobre o assunto lançada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), protagonizada por Camila Pitanga, atriz e embaixadora da ONU Mulheres.
Segundo o Mapa das Mulheres na Política 2020, da Organização das Nações Unidas (ONU), dos países latino-americanos, o Brasil ocupa um dos piores lugares no ranking de representação feminina no Parlamento: figura na 140ª posição, à frente apenas de Belize (169º) e Haiti (186º).
Em 2020, a Câmara dos Deputados realizou um debate sobre o tema. Na ocasião, a ONU Mulher apresentou os seguintes dados: 82 % das mulheres em espaços políticos já sofreram violência psicológica; 45% já sofreram ameaças; 25% sofreram violência física no espaço parlamentar; 20%, assédio sexual; e 40% das mulheres afirmaram que a violência atrapalhou sua agenda legislativa.
A violência política de gênero não é pontual e não se esgota na humilhação, nas ameaças, nos xingamentos e no assédio, mas pode levar ao feminicídio. O México, por exemplo, apresenta os maiores números de mulheres políticas assassinadas (23 em 2018; 21 no processo eleitoral de 2021). No Brasil, não posso deixar de mencionar a morte da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco.
Para alcançar a igualdade política de gênero, tão cara à democracia, não basta a implementação de cotas, a paridade eleitoral e sanção de leis. É imprescindível que os espaços políticos, de poder e decisão estejam livres de discriminação e violência contra as mulheres.
Depois do histórico silenciamento sobre os diferentes abusos e violências que sofremos, estamos tendo cada vez mais voz. Além da visibilidade e da busca por mais espaços de debate, é imprescindível que a educação, propulsora fundamental para qualquer avanço social, e o desenvolvimento de políticas públicas – pedagógicas, preventivas e punitivas – sejam a base para combater a reprodução e a naturalização das violências cotidianas contra as mulheres.
O paradoxo é que quem deveria criar os mecanismos institucionais para o enfrentamento à violência de gênero são, muitas vezes, os primeiros reproduzi-la no ambiente político. Nesse xadrez, não resta saída a não ser o apelo à irmandade e à sororidade entre as mulheres. Patricia Augsten | Jornalista, Mestra em Comunicação Social (PUCRS), Doutoranda em Comunicação e Informação (UFRGS) e Pesquisadora do grupo de pesquisa Núcleo de Comunicação Pública e Política (NUCOP).
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